quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Eu que um dia fui feliz - Dihelson Mendonça



"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. "

Alberto Caieiro


Quanta saudade eu tenho daquele tempo imemorial, em que eu saía para o mato com meu avô, em manhã nublada e de chuva, bem cedo, a caminho das roças de arroz e das caieiras de tijolos, passando por dentro de cercas de arame farpado, atravessando baixios, pisando em lama, barro, vendo as minhocas e imbuás remexendo a terra, enquanto a serra do Quincuncá era de pura beleza, com uma névoa que recobria o topo...

Embalado ao cheiro do cuscuz com feijão, torresmo, e uma carne assada, feito nas panelas de barro, molho de pimenta malagueta, cheiro esse que saía de cada chaminé das casas de taipa do caminho numa fumaça azulada; O Dicumê da roça, que parecia uma trilha sonora entrando pelo nariz adentro e combinava tão bem com a paisagem que explodia à nossa frente de puro verde.

Passávamos por debaixo dos pés de Oiticica, ladeando corredores de frondosas mangueiras. A terra tinha um manto de folhas secas amarelas e alaranjadas, e a areia ? a Areia milenar de tantas folhas já decompostas, tinha um cheiro especial que guardo até hoje em mim.

Atravessávamos o rio na canoa de "Seu beija", em tempos de enchentes. Ah! quem não viajou na canoa de "Beija" não aprendeu o sentido da vida! A água entrava pelas frestas, e eu tinha medo daquilo afundar com todos nós. Um mêdo que refrigera a alma.

...Descendo as ladeiras, havia um Anum em cada estaca da estrada, acenando para os passantes com a sua cauda preta, e gritando num bom agouro: Anum...Anum...Anum...

À noite, centenas de vagalumes pareciam competir com o claro amarelo, azul e verde dos candeeiros de querosene, e eu me deitava ao relento, com a cabeça encostada numa pedra, olhando por dentro dos arbustos e ouvia lá da varanda, as estórias dos velhos, com seus cachimbos, cigarros de palha e cafés quentes, enquanto o claro azul da lua proporcionava um espetáculo ímpar, ora saindo, ora entrando dentro das núvens, que formavam desenhos gigantescos na abóboda celestial.

"O véio Mané Pereira, Seu Manezão, Nêgo Zomin, Antonio Mendonça Leite"...cadê todos vocês ? Já sei. Estão naquela varanda ainda, nas noites do meu sertão, contando histórias, estórias, e esperando por mim. Amigos, um dia estarei novamente com vocês, nas mesmas noites enluaradas, e sendo novamente o eu que um dia fui feliz. Se eu morresse amanhã, ainda assim morreria contente, porque eu tive uma vida...muito antes de me dar conta em tentar escolher a melhor de todas elas.

Dihelson Mendonça

( Memórias - Dedicado ao poeta Wilson Bernardo )

4 comentários:

Edilma disse...

Dihelson,

Que texto completo nas coisas simples da vida plena de liberdade e paz. As imagens publicadas até me deram vontade de por nos meus pincéis de tão puras.
Você é entre outras coisas um bom escritor e quando está inspirado, escreve, escreve...
Não lhe faltam as palavras.
Estava sentindo a sua ausencia. Por onde andou ?
Não me ligou, mas estarei novamente no Crato no final do mês, quem sabe ?...
Parabéns !
Com admiração !

Joilson Kariri Rodrigues disse...

Fiz uma viagem a bordo desse texto, Dihelson. Também fui menino do sertão e tb ouvi muitos causos nas noites enluaradas, contados pelo avô de Zomim.
Cheguei a ter contato com Zomim aqui em São Paulo, frequentei sua(a dele) casa e ele frequentou a minha, mas depois nos perdemos por essas veredas de concretos.

A névoa no topo da serra do Quincuncá é uma das lembranças mais bonitas que guardo em mim.
Parabéns pelo texto e fotos (estendido a WB)
Abraços!

Dihelson Mendonça disse...

Edilma, muito obrigado pela sua gentileza de me considerar um bom escritor. Na verdade, falta mais do que o mar para que eu pudesse ser, mas nem só de pão vive o homem...rs rs e eu vou precisar praticar para poder escrever minhas "Memórias". Tem tanta coisa que eu gostaria de contar, mas falta tempo e Ação para começar. Mas hei de começar com pequenos textos.

Um grande abraço,
E quando vc for vir, me avisa antes, para eu me programar e a gente fazer uma caminhada fotográfica.

Dihelson Mendonça

Dihelson Mendonça disse...

Joilson, meu primo!

Você é uma das pessoas que viu muita coisa que eu vi, e eu fico muito contente de você estar por aqui para dar o seu testemunho de que é verdade, porque nós convivemos lá em Farias Brito, embora faça muito tempo, e foi por pouco tempo, mas vimos coisas parecidíssimas.

O mundo era dos adultos. Agora é nosso. Depois será dos filhos, netos...

Lembra da casa do sítio Escondido ? Uma casa azul que ainda existe por lá ? Perto da casa de Aurélio, a que tem uma estrela, Ainda sou a fim de comprar aquela casa...

Abraços,

Dihelson Mendonça